Entre Portas e Pedras: O Recomeço Começa Aqui
Às vezes, lemos Neemias capítulo 3 como quem passa os olhos por uma lista antiga e impessoal. São muitos nomes, muitos detalhes, uma sequência aparentemente repetitiva. Mas, quando leio com calma, com o coração atento, esse capítulo ganha vida. É como se eu ouvisse o som das ferramentas, os gritos de encorajamento, e visse as famílias ali, lado a lado, restaurando não só os muros de Jerusalém, mas algo dentro delas também. Porque Neemias 3 fala sobre recomeçar a partir de onde estamos, da nossa própria casa.
Jerusalém, naquele tempo, era mais do que um endereço. Era símbolo da presença de Deus, da identidade do povo, da sua história. No mundo antigo, os muros de uma cidade eram sua principal defesa. Muros baixos ou quebrados significavam exposição, vergonha e insegurança. No Oriente Próximo, cidades sem muralhas eram consideradas derrotadas, política, espiritual e moralmente.
Mesmo depois do retorno do exílio, a cidade santa continuava com seus muros em ruínas. Era como se a alma do povo ainda estivesse despedaçada. Foi nesse cenário que Neemias, um judeu longe de casa, trabalhando como copeiro do rei da Pérsia, recebeu notícias que o fizeram chorar, jejuar e orar. E esse é um começo que me inspira. Neemias não era sacerdote, nem pedreiro, nem general. Era alguém comum, mas que teve o coração tocado pela dor de outros. E eu penso: será que também estou atenta ao que precisa ser reconstruído ao meu redor?
O que mais me impressiona, no entanto, é o modo como Neemias lidera. Ele chega em Jerusalém com sabedoria e silêncio. Faz uma inspeção noturna. Ouve, observa. E então mobiliza. Mas não como um chefe que impõe ordens. Ele distribui tarefas com sensibilidade. E um detalhe se repete várias vezes em Neemias 3: as pessoas reconstruíram diante da sua casa, neged beito. Essa expressão simples carrega um significado profundo. Neemias não pediu que eles fossem aos cantos distantes da cidade. Pediu que começassem onde estavam. Com o que tinham. Com quem tinham.
Na cultura hebraica, casa, beit, não era só um lugar físico. Era o centro da vida espiritual e familiar. Era onde se orava, se ensinava a Torah, se passavam os valores. Servir a Deus a partir da casa era natural. Mas, naquele momento, também era um desafio: reconstruir o muro em frente à sua casa significava proteger o lar e, ao mesmo tempo, assumir publicamente a responsabilidade pela cidade. Significava se comprometer. Não havia como terceirizar.
O verbo hebraico usado para reparar ali é hazaq, que também significa fortalecer. Não é só colocar pedras no lugar. É dar firmeza, dar estrutura. E percebo que não se trata só de uma construção externa, mas de um fortalecimento interior. Cada família que pegava suas ferramentas estava, na verdade, dizendo: Nós cremos que vale a pena recomeçar. Vale a pena reconstruir o que foi perdido. Isso me alcança. Porque nem sempre tenho forças para grandes obras, mas talvez Deus esteja só me pedindo: Comece pelo que está diante de você.
Outra expressão que aparece muito no capítulo é ao seu lado, ʿal-yadô. Esse detalhe mostra que ninguém construiu sozinho. Havia cooperação. Havia ritmo. Um trecho ligado ao outro, como os corações que se encorajavam mutuamente. Nos tempos antigos, cidades fortes eram aquelas cujos muros não tinham brechas, e Neemias entendeu que a unidade do povo era tão importante quanto as pedras que colocavam.
Hoje, lendo e estudando esse capítulo, não posso me colocar como observadora. Eu também preciso reconstruir muros. Talvez não físicos, mas espirituais, emocionais, familiares. E, como no tempo de Neemias, tudo começa diante da minha casa. No que digo, no que calo, no que oro, no que decido amar e restaurar.
Talvez o recomeço que tanto buscamos esteja mais perto do que imaginamos. Ele pode não vir com grandes sinais, nem começar por grandes feitos. Talvez comece com algo tão simples e tão sagrado quanto olhar para o que está diante de nós e dizer: Sim, Senhor, estou aqui. Posso começar por essa parte do muro.
Deus não espera que carreguemos o peso de toda a cidade, apenas que sejamos fiéis na parte que Ele nos confiou. E quando cada um assume sua porção com fé e coragem, o impossível se torna realidade. Foi assim em Jerusalém. Em apenas 52 dias, os muros foram erguidos, as portas colocadas, a vergonha removida. Não porque Neemias fosse um herói solitário, mas porque um povo inteiro decidiu reconstruir junto.
Essa história ainda me emociona. Ainda me move. Porque me lembra que Deus continua chamando pessoas comuns, em lugares comuns, para obras eternas. Gente que olha para sua casa, sua rua, sua comunidade, e entende que ali pode começar algo novo. E essa é apenas uma parte da jornada. Ainda há muito o que ser lido, vivido e descoberto no livro de Neemias.
Que essa também seja a nossa resposta: um sim sincero, corajoso e perseverante.
Porque entre portas e pedras, Deus segue construindo histórias de restauração, começando por mim, começando por você.
Soraya Mahmud Abdulhamid